Governo ainda precisa definir quais grupos serão contemplados e como operacionalizará medida; Rio Grande do Sul e outros países oferecem exemplos
O cashback se popularizou como uma estratégia do varejo para atrair clientes. O funcionamento é simples: parte do valor do produto ou serviço que o consumidor adquire é devolvida a ele, seja em dinheiro ou em créditos. Agora, essa lógica pode ser aplicada também aos impostos no Brasil. É a proposta do que o Ministério da Fazenda tem chamado de “cashback do povo”, integrante da reforma tributária. Por um lado, é uma estratégia que analistas elogiam pela intenção de reduzir as desigualdades de renda. Por outro, eles têm dúvidas sobre como ela será colocada em prática e se, de fato, será eficaz.
O cashback da reforma tributária significa que parte dos impostos pagos pelos consumidores será devolvida a eles. Por ora, o governo se limitou a dizer que “o mais importante neste momento é incluir na Constituição a previsão desse mecanismo” e ainda discute quem serão os beneficiários, o limite para a devolução e de que formas o valor será pago. Em um cenário no qual somente os inscritos no Cadastro Único (CadÚnico) sejam beneficiados, por exemplo, o cashback poderia alcançar 41,8 milhões de famílias no Brasil, quase 3,8 milhões delas em Minas Gerais.
O cashback é mencionado no texto da reforma, porém só será regulamentado após a aprovação da mudança no Congresso. Assim, até lá, há margem para discutir pontos importantes e indefinidos sobre o programa, que você confere ponto a ponto abaixo, parte da série de reportagens “Be-A-Bá da Reforma”:
Como funcionará o cashback da reforma tributária?
O texto-base aprovado pela Câmara e encaminhado ao Senado prevê que outra lei regulamentará o cashback após a reforma tributária — isto é, a definição sobre as normas que ele obedecerá só deve ocorrer em 2024. O texto já esclarece, contudo, que o objetivo é “reduzir as desigualdades de renda” no país. Confira o texto aprovado:
A operacionalização do cashback ainda é um mistério. Mas representantes do governo federal dão pistas, há meses, sobre possibilidades de implantação do programa. O secretário extraordinário para reforma tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, já disse, por exemplo, que o cashback poderia ser estendido a toda a população, com faixas diferentes de devolução de impostos por nível de renda, e não se limitar a quem estiver no CadÚnico. Ele também já defendeu o cashback como uma alternativa à desoneração da cesta básica — mas isso não deve ocorrer. O texto que foi aprovado na Câmara prevê isenção total de impostos sobre os itens da cesta e redução de tributos para os demais alimentos, diferentemente da ideia inicial.
O deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG), que coordenou o grupo de trabalho para a reforma tributária, reconhece que há caminhos diversos para a adoção do cashback. “Pode ser que o cidadão pague e receba depois no Pix ou no cartão do Bolsa Família. Vai ser só para o CadÚnico? Pode ser progressivo, como o Imposto de Renda, só para o CadÚnico ou só para quem não declara, por exemplo”, diz.
O professor de direito tributário do Ibmec-BH Bernardo Motta Moreira lembra aspectos que ainda precisam ser debatidos: “A forma de operacionalizar e o valor que será devolvido ainda serão objeto de discussão. Se a devolução será direta ou a partir de um desconto nos produtos, por exemplo. É necessário haver uma discussão profunda no Senado, porque isso não ocorreu na Câmara, onde tudo foi muito acelerado”.
Hoje, já existem modelos de cashback tributário em países latino-americanos e em Estados brasileiros que podem servir como modelo à proposta da reforma (confira nos tópicos a seguir). No Brasil, alguns desafios ficam no caminho do cashback, como as compras informais — que não têm nota fiscal — e alcançar toda a população vulnerável que, por vezes, sequer está no CadÚnico.
O advogado tributarista e professor da UFMG e da PUC Minas Flávio Bernardes avalia com desconfiança a implantação do cashback. Do ponto de vista dele, a implantação e o controle de um cashback que abrangesse toda a população seria tão complexa que poderia não valer o custo-benefício. “É algo de difícil apuração. Um exemplo claro são o auxílio emergencial da pandemia e o Bolsa-Família, em que pessoas que precisavam não estavam cadastradas. Também há risco de fraude”, pontua.
Uma possibilidade para o cashback seria dar um crédito a mais a beneficiários de programas sociais periodicamente como forma de devolução dos tributos. “Mas isso não é cashback, é só um aumento”, pondera Bernardes. Isso porque, argumenta ele, a lógica do cashback é devolver os tributos que foram pagos, e não criar um bônus com um valor igual para todos os beneficiários, independentemente do que eles tenham comprado.
População mais pobre pagará menos impostos devido ao cashback?
A adoção de um cashback é defendida por muitos porque os mais pobres são os mais prejudicados proporcionalmente ao pagar impostos por consumo – uma compra no supermercado de R$ 200 pesa muito mais no bolso de alguém da classe C/D/E do que de uma pessoa da classe A/B.
“Sou a favor de o cashback ser um instrumento de justiça tributária, mas especialmente de consciência fiscal. É bom lembrar que os ricos já têm um tipo de cashback, porque pessoas com maior renda têm restituição do imposto de renda com serviços de saúde e educação. Quero que pessoas com menor poder econômico também tenham restituição, porque elas gastam 100% com alimentação e não com serviços”, introduz o deputado federal Reginaldo Lopes. Ele analisa, ainda, que, ao receber o cashback, o cidadão terá mais consciência sobre o quanto paga de impostos no Brasil.
O cashback é uma resposta ao atual sistema tributário do país, que é considerado regressivo por muitos especialistas — ou seja, um sistema que arrecada proporcionalmente mais de quem ganha menos.
O professor de direito tributário do Ibmec-BH Bernardo Motta Moreira considera que o cashback seria eficaz em um cenário no qual fosse adotada uma alíquota padrão para o consumo, e os mais pobres recebessem de volta parte dos tributos pagos.
A realidade, contudo, é que uma série de produtos deve receber isenções com a reforma. Está previsto, por exemplo, que não incidam impostos sobre os itens da cesta básica, que é consumida tanto por ricos quanto por pobres. Na perspectiva do professor, seria mais justo haver cobrança de impostos sobre os itens e, ao mesmo tempo, devolução do valor aos mais vulneráveis.
Assim, ele avalia que o cashback será efetivo se a alíquota padrão definida pela reforma tributária não for tão alta quanto o que se estima atualmente — acima de 25%. “Essa alíquota de referência necessariamente aumenta para sustentar todas as exceções a ela que estão sendo postas. Um impacto negativo disso é sobre o cashback, porque precisamos arrecadar dinheiro. Na ideia original da Proposta de Emenda à Constituição (PEC), a cesta básica seria tributada, por exemplo, com devolução dos valores para quem precisa”, pontua.
Quantas pessoas receberão o cashback e quanto será pago?
O número de beneficiários do cashback da reforma tributária dependerá dos grupos que o governo decidir que terão direito à devolução dos impostos. Um estudo do final de 2021 do movimento Pra Ser Justo, grupo de organizações da sociedade civil a favor da reforma, calcula que 72,4 milhões de pessoas, mais de um terço da população brasileira, seriam beneficiadas se fosse levada em conta a base no CadÚnico — a base sofreu alterações desde então. Em Minas, entre 30% e 40% da população teriam acesso ao benefício.
O valor restituído, na simulação do movimento, seria de R$ 13,22 mensais por pessoa nas menores faixas de renda — ou seja, R$ 26,44 por mês para uma família de duas pessoas e R$ 52,88 para uma família de quatro integrantes. O custo anual para os cofres públicos seria de R$ 9,8 bilhões.
Coordenador da Associação Brasileira de Economistas Pela Democracia (Abed), o economista Paulo Bretas considera que a devolução de impostos precisa favorecer beneficiários de programas sociais. “Eu tenho as minhas dúvidas se o cashback vai funcionar. Quero ver como ficará a lei complementar que tratará desse assunto. É uma coisa justa, pois ninguém vai ser contra o pobre ter essa vantagem de ter devolução de impostos, mas eu acho que é de difícil execução no Brasil. O Ministério da Fazenda tem técnicos muito competentes. Vamos ver se eles conseguem pelo menos beneficiar o pessoal que recebe o Bolsa Família, que está incluído no CadÚnico, isso está mais fácil agora porque todo mundo tem celular e Pix”.
Algum Estado já adotou essa prática?
Um modelo de cashback é adotado pelo Rio Grande do Sul desde o final de 2021, com o nome Devolve ICMS. O programa prevê o pagamento de pelo menos R$ 100 a cada três meses a famílias do Estado que estejam cadastradas no Bolsa Família. Os beneficiados que solicitam notas fiscais ao realizarem uma compra recebem, ainda, um complemento ao valor.
Os valores são depositados em um cartão de débito. Um levantamento do Estado com dados de até abril deste ano mostra que 83% dos gastos foram em supermercados, açougues e padarias, e outros 6% em farmácias. Com o cashback, a renda média dos beneficiados aumentou 16%.
Em São Paulo, o consumidor também recebe créditos ao incluir o CPF na nota fiscal do que consome, parte do programa Nota Fiscal Paulista, que existe desde 2007. Diferentemente do projeto gaúcho, ele não diferencia faixas de renda e pode ser utilizado por qualquer cidadão.
Quais outros países utilizam o cashback de impostos?
A ideia de um cashback de impostos foi apresentada há uma década pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e adotada por pelo menos cinco vizinhos latino-americanos — Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador e Uruguai. Outras referências internacionais são algumas províncias canadenses.
Na Argentina, a solução foi criada emergencialmente na pandemia e prosseguiu nos meses seguintes para aposentados, pensionistas e outros beneficiários de programas sociais. O reembolso é feito diretamente na conta bancária e corresponde a 15% dos valores gastos. Na Bolívia, a devolução de até 5% dos impostos sobre o consumo é para todos os que incluírem o CPF na nota fiscal e restrito a faixas de renda.
O programa da Colômbia é um dos mais amplos. Famílias vulneráveis recebem um valor a cada dois meses em um cartão pré-pago ou em lotéricas. No Equador, idosos e pessoas com deficiência recebem uma devolução mensal — com limite — pelo pagamento de impostos em produtos e serviços em setores como saúde e educação. Já o modelo do Uruguai segue outra lógica: em vez de devolver uma parte dos impostos algum tempo depois das compras, a população de baixa renda que utiliza um cartão de débito disponibilizado pelo governo recebe um desconto já no momento da compra, com limite de gastos.
No Canadá, o retorno é fixo e dividido por faixa de renda e outras características, como estado civil, para quem declara o imposto de renda. Pessoas que não receberam nada durante o ano também podem declarar para ter acesso à restituição.
Fonte: O tempo